terça-feira, 9 de agosto de 2011

A Palavra - Rubem Braga

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito _ como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse porque senti no momento _ e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele; cantarolasse; batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma melodia de Beethoven _ e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma ligação secreta entre a alma do artista e o pequeno pássaro?
Alguma coisa que eu disse distraído _ talvez palavras de algum poeta antigo _ foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças. (Novembro, 1959)